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Quando Ler Não Basta: O Impacto Silencioso do Analfabetismo Funcional na Economia Digital

  • Foto do escritor: Audria Piccolomini
    Audria Piccolomini
  • há 3 dias
  • 6 min de leitura
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O analfabetismo funcional permanece como uma das barreiras estruturais mais profundas para o progresso humano, para a competitividade das nações e para a capacidade real dos indivíduos se beneficiarem da revolução tecnológica que se intensifica ano após ano. Embora a narrativa global frequentemente celebre avanços na educação básica e no acesso à instrução formal, a realidade é muito mais complexa. Dados internacionais mostram que saber decodificar letras e palavras não equivale a compreender, interpretar, analisar e transformar textos em ação no mundo real. E é justamente esse ponto que a distância entre alfabetização básica e alfabetização funcional que cria um descompasso crescente entre tecnologias avançadas e a capacidade humana de usá-las plenamente. Organizações, governos e empresas que já operam com inteligência artificial começaram a perceber que a barreira não é a tecnologia em si, mas a capacidade cognitiva de seus times para formular prompts, interpretar resultados, avaliar riscos e transformar automação em valor. O analfabetismo funcional, portanto, não é apenas um problema social; é um problema econômico e tecnológico global.

Segundo a UNESCO, aproximadamente 86,3% da população mundial acima de 15 anos sabe ler e escrever em sentido básico. O número parece elevado, e de fato representa um avanço histórico quando comparado às taxas de alfabetização do século XX. No entanto, esse indicador deixa de fora um aspecto essencial: a proficiência funcional. Pesquisas internacionais mostram que entender frases curtas ou assinar o próprio nome não é suficiente para participar plenamente da economia digital. Relatórios de alfabetização global estimam que centenas de milhões de adultos permanecem sem habilidade funcional suficiente para realizar tarefas cotidianas que exigem leitura interpretativa, interpretação de instruções técnicas, comparação de informações ou compreensão de formulários, contratos, termos de uso ou dashboards digitais. A complexidade aumenta quando consideramos que tecnologias como IA generativa, automação inteligente e sistemas de apoio à decisão exigem do usuário não apenas leitura, mas raciocínio crítico, checagem de viés, consistência lógica e capacidade de transformar outputs em decisões.

Países que medem alfabetização funcional, como os participantes do Programa para a Avaliação Internacional de Competências de Adultos (PIAAC), administrado pela OCDE, oferecem uma visão mais precisa do cenário. O PIAAC (e que o Brasil não faz parte, e vários países da America Latina fazem parte) classifica adultos em níveis de proficiência que vão desde capacidades rudimentares até habilidades complexas de processamento de texto, raciocínio e solução de problemas. Indivíduos posicionados abaixo do nível 1 apresentam dificuldades claras em interpretar instruções simples, localizar informações explícitas em textos curtos e realizar tarefas que exigem integração mínima de conceitos. Esses indivíduos são considerados analfabetos funcionais, ainda que saibam ler palavras isoladas. Estudos PIAAC revelam que mesmo em países desenvolvidos, uma parcela significativa da população adulta está em níveis baixos. Ou seja, mesmo sociedades com sistemas educacionais avançados convivem com milhões de pessoas incapazes de compreender plenamente planilhas, manuais, relatórios ou textos técnicos, que são os elementos básicos da economia contemporânea.

Essa distinção é crucial: não basta medir quem “sabe ler”; é necessário medir quem consegue aplicar leitura e escrita para resolver problemas reais. A alfabetização funcional é a verdadeira métrica de inclusão cognitiva. E é essa métrica que revela o tamanho do abismo que a inteligência artificial tende a aprofundar se não houver intervenções estratégicas.

O caso brasileiro é emblemático. O Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), a principal métrica nacional aplicada de maneira consistente, mostra que aproximadamente 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais. Isso significa que quase 3 em cada 10 adultos têm dificuldades para interpretar textos, executar cálculos simples, compreender instruções de trabalho, seguir procedimentos escritos, checar informações ou analisar mensagens mais complexas. Esses dados, amplamente divulgados por organizações que estudam o INAF, revelam um cenário muito distante da taxa de analfabetismo absoluto registrada pelo IBGE, que caiu de 6,1% em 2019 para 5,6% em 2022. Ou seja, embora o Brasil tenha reduzido o número de pessoas que não sabem ler nem escrever, a capacidade de aplicar leitura e escrita para resolver problemas permanece drasticamente limitada para uma parte expressiva da população adulta.

Isso cria um paradoxo brasileiro: ao mesmo tempo em que cresce o acesso à tecnologia, à internet e a dispositivos digitais, cresce também a distância entre o potencial desses recursos e o uso efetivo que a população consegue fazer deles. A economia exige habilidades que grande parte das pessoas não possui. A alfabetização funcional insuficiente se torna, assim, um gargalo para empregabilidade, produtividade e ascensão tecnológica. E esse gargalo não é visível apenas no cotidiano social; ele atravessa o coração das empresas.

A inteligência artificial, mesmo nas suas interfaces mais fluidas, não é uma solução mágica. Ela exige competências cognitivas consolidadas. Para formular prompts claros, o usuário precisa escrever bem. Para entender resultados complexos, precisa interpretar. Para analisar sugestões de IA, precisa raciocinar criticamente. Para avaliar inconsistências, precisa comparar informações. A IA não substitui essas habilidades; ela as potencializa para quem as possui e evidencia sua ausência para quem não as tem. Estudos da OCDE e pesquisas internacionais de literacia digital apontam uma correlação direta entre níveis de alfabetização funcional e capacidade de usar ferramentas tecnológicas para tarefas de alta complexidade. Quando a alfabetização funcional é baixa, o potencial de adoção efetiva da IA diminui drasticamente.

Isso se manifesta na prática corporativa de múltiplas maneiras. A primeira área impactada é a produtividade. Funcionários com baixa proficiência textual tendem a cometer mais erros ao seguir instruções escritas, interpretar fluxos de trabalho ou usar sistemas digitais internos. Isso resulta em retrabalhos, erros operacionais, necessidade constante de supervisão e perda de eficiência. Relatórios sobre os custos globais do analfabetismo estimam prejuízos de bilhões de dólares mesmo em economias avançadas, considerando acidentes de trabalho, desperdício, baixa eficiência em treinamentos e tempo perdido. Em países como o Brasil, onde a proporção de adultos com baixa proficiência é alta, esse impacto é ainda maior.

A adoção de IA também sofre com esse cenário. Empresas que implementam sistemas de automação inteligente esperam ganhar velocidade, precisão e redução de custos. Porém, quando 20 a 30% da força de trabalho apresenta dificuldade em interpretar textos e comandos, o retorno sobre investimento (ROI) se reduz. O custo para treinar essas pessoas aumenta. O tempo de supervisão cresce. A checagem de qualidade precisa ser intensificada. A complexidade de implementação exige camadas adicionais de validação. Em vez de acelerar processos, a IA acaba expondo a fragilidade do capital humano  e isso afeta diretamente os ganhos esperados.

Outro impacto ocorre na tomada de decisão. Modelos de IA, por mais sofisticados que sejam, podem gerar resultados enviesados, incompletos ou incorretos. A filtragem crítica desses outputs depende de literacia funcional. Em equipes com baixa proficiência, há maior tendência a aceitar mensagens automatizadas sem questionamento, ampliando riscos de compliance, reputação e decisões equivocadas. A falta de leitura analítica aumenta vulnerabilidades em departamentos como financeiro, jurídico, atendimento ao cliente e operações. E estudos internacionais mostram que quando a força de trabalho não consegue entender plenamente textos, instruções e relatórios, as chances de erros críticos se multiplicam.

No campo da inovação, o prejuízo é ainda mais profundo. A IA não é apenas uma ferramenta operacional; ela exige interação criativa. É necessário testar prompts, comparar respostas, analisar efeito de diferentes abordagens, adaptar modelos a necessidades específicas e participar da construção de soluções híbridas humano-máquina. Funcionários com baixa alfabetização funcional têm dificuldade de participar desses processos. Isso cria um fosso competitivo entre empresas que investem em upskilling (processo de aprender novas habilidades ou aprimorar as existentes para se manter relevante em sua área de atuação) e empresas que não investem. Ao longo do tempo, organizações com baixo nível médio de alfabetização funcional se tornam incapazes de acompanhar a velocidade da transformação digital, reproduzindo desigualdades internas e externas.

Diante desse cenário, empresas precisam de estratégias práticas. A primeira delas é diagnosticar habilidades antes de grandes implementações tecnológicas. Avaliações internas de proficiência textual e literacia digital permitem identificar onde estão os gargalos e calibrar expectativas realistas sobre treinamento e adoção. A segunda é criar trilhas de upskilling específicas, com micro cursos focados em leitura aplicada, numeracia básica e uso estruturado de IA. Treinamentos curtos, repetitivos e com forte componente prático são os mais eficazes para elevar competências funcionais. A terceira recomendação envolve redesenhar processos com guardrails (também chamados de barreiras de proteção, são mecanismos técnicos e/ou políticas que guiam e restringem o comportamento de modelos de IA dentro de uma corporação, para assegurar que suas saídas sejam seguras, éticas e confiáveis): criar checklists, templates validados de prompts, padrões de verificação e camadas de controle que reduzam a dependência de interpretação textual complexa. Isso permite que equipes de diferentes níveis de habilidade operem sistemas de IA com segurança.

Também é necessário ajustar métricas de ROI. Medir retorno de IA sem considerar o custo de treinamento, supervisão e maturação do capital humano gera metas irreais. Empresas que integram esses fatores em seus modelos alcançam previsões mais consistentes. Por fim, a composição de times deve evoluir: equipes híbridas, com pessoas de alta proficiência atuando como “mentores internos”, potencializam a curva de aprendizagem de toda a organização.

O analfabetismo funcional é uma barreira invisível, mas mensurável, que restringe inclusão, competitividade e capacidade de aproveitar avanços tecnológicos. No Brasil, cerca de 29% dos adultos enfrentam limitações funcionais significativas. Globalmente, centenas de milhões vivem a mesma realidade. Na nova economia, alfabetização funcional deixa de ser apenas um tema pedagógico: torna-se um requisito estratégico. Organizações que compreendem isso e investem em elevar as competências reais de sua força de trabalho terão vantagem competitiva clara, maior retorno de iniciativas de IA e menor risco de decisões equivocadas. A tecnologia avança; o desafio está em garantir que as pessoas avancem junto com ela.


 
 
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